29 janeiro 2020

O Gato Schrodinger 1

Schrodinger  -  O gato que atravessa as paredes 


( Conto para crianças e adolescentes que vivem na era da magia. 
Foi escrito para os meus filhos mais novos e para os meus netos, em honra dos gatos que viveram as suas vidas com a minha família e também em honra do físico que imaginou uma experiência célebre com um gato que existia vivo e morto ao mesmo tempo)

O meu gato é extraordinário em tudo. Primeiro: ele não nasceu como os outros gatos. Apareceu simplesmente dentro de casa, quando todas as portas e janelas estavam fechadas. Sei que os gatos conseguem fazer coisas estranhas, mas durante muito tempo não consegui explicar como é que ele apareceu.
Quando surgiu e começou a olhar fixamente para mim, senti-me um pouco assustado, pois era ainda um menino. Mas como ele não miou, não bufou, nem se mexeu,  comecei a  ficar relaxado e a admirar o belo exemplar de animal.
Em segundo lugar:  reparei que trazia uma coleira com um nome escrito - Schrodinger. Quando vi aquilo, pensei quem seria o maluco que deu um nome desses a um gato.  Depois, achei que era um nome nobre e que ficava bem àquele animal de porte altivo e aparência elegante.
Sempre desejei ter um gato e acho que Deus sentiu o meu desejo e me enviou o gato mais lindo do mundo. Era grande e tinha um pêlo brilhante e bem cuidado. Possuía uns grandes bigodes e tinha uns olhos inteligentes como os das pessoas.
Fiquei logo apaixonado por aquele gato. Corri para ele para lhe pegar e, estranhamente, não fugiu e deixou que o agarrasse, como se me conhecesse desde sempre.
Mostrei-lhe o quarto e falei-lhe enquanto lhe apresentava as minhas coisas: os meus brinquedos, as minhas mascotes, os meus livros, a minha consola.
Ele prestava atenção ao que eu dizia como se estivesse a entender tudo. Quando senti a minha mãe no hall, corri a abraçá-la :
"- Que lindo gato que me deste!"
A minha mãe respondeu-me espantada :
"- Que gato? "
Apontei então para o quarto onde o Schrodinger estava majestosamente sentado na minha cama:
"-Anda ver! Aquele! "
A minha mãe arrefecendo o meu entusiasmo disse :
“-Deve ser algum gato vadio que entrou em casa sem ninguém notar!”
 Retorqui:
" -Não pode ser vadio! Tem nome escrito na coleira: é o Schrodinger!"
Apanhei com mais um balde de gelo :
" - Então já deve ter dono! É com certeza o gato de algum vizinho que entrou por alguma janela aberta . Temos de o devolver. Enxota-o para  fora de casa! "
Choraminguei:
" - Mas ele gosta de mim! Até deixou que eu o pegasse ao colo! Deixa-o ficar cá em casa que vou perguntar aos vizinhos se alguém conhece o dono deste gato! "
 A minha mãe concordou e chamei pelo nome do gato que estranhamente me seguiu como um cão e juntos saímos para a rua. Durante horas, percorremos juntos todas as ruas da vizinhança , onde  perguntei em todas as casas, se aquele gato lhes pertencia.
Cansado mas feliz, regressei a casa, com o gato ao sempre ao meu lado e, triunfante, falei à minha mãe:
" - Ninguém o conhece! Por isso é meu ! Andava perdido e fui eu que o achei!”
A minha mãe arrefeceu novamente o meu entusiasmo quando me disse que tinha de pedir autorização ao meu pai para poder ficar com ele. O meu pai observou o bicho, comentou sobre o facto de estar bem cuidado e sobre a  coleira com o estranho nome.
Disse na altura:
"-Esta coleira parece feita de ouro amarelo e de ouro branco! Estranho!"
Contudo, aceitou que eu ficasse com ele em casa até aparecer  o dono. Resolvemos colocar um anúncio no jornal com a foto, o nome do gato e a frase : - É o Schrodinger! Entrega-se a quem provar que lhe pertence .
Publicamos o anúncio todos os fins de semana durante um mês, mas, para minha felicidade, ninguém reclamou o bichano.  Assim, fui ficando com ele em casa. Bem! Ficar é uma força de expressão, pois o Schrodinger desaparecia sem deixar rasto e voltava a aparecer no meu quarto, sem que ninguém desse pela sua entrada.
O meu estranho gato foi sempre um poço de surpresas estranhas. Se disser que o meu gato fala, ninguém vai acreditar e vão pensar que estou doido. Mas a verdade é que ele fala comigo. Bem, falar é uma forma de dizer, na realidade eu sinto as suas palavras como se fossem os meus pensamentos.
A primeira vez que isso me aconteceu achei que estava a ficar maluco. O gato estava a falar para mim, mas da sua boca não saia nenhum som. Nem sequer um pelo do seu bigode se mexia. Isso aconteceu quando estava  no meu quarto a tentar resolver um puzzle difícil e não conseguia. Então, ouvi alguém dizer-me:
" -Aí, serve a peça verde e castanha."
Assustado, olhei em volta e só vi o Schrodinger a olhar-me fixamente que, como de costume, tinha aparecido vindo do nada. Eu tinha fechado a porta e as janelas e estas continuavam fechadas. O gato continuava quieto mas a voz martelava-me os ouvidos:
"- Então não vês que aí serve a peça verde e castanha?"
Coloquei a peça no lugar e serviu. Espantado vi-me a perguntar ao gato:
" - Schrodinger ! Tu falas e sabes resolver puzzles? "
"- Sim!" - respondeu a mesma voz e o gato saltou para a mesa e, para meu espanto, começou a colocar no seu devido lugar, todas as peças do puzzle.
Desde esse dia habituei-me a falar com o meu gato. Mas isso era só quando ele queria. A maior parte das vezes ignorava os meus pedidos e comportava-se como se fosse mais estúpido do que os gatos normais. Uma vez, a minha mãe apanhou-me no quarto a falar com ele em voz alta, como habitualmente fazia e, quando abriu a porta, perguntou :
" -  Com quem estavas a falar? "
Respondi sem pensar :
"- Com o Schrodinger! "
" -Qual Scrodinger? Não vejo aqui nenhum gato!" - perguntou a minha mãe. Só então me dei conta que não havia nenhum gato no quarto e disse-lhe:
"- Deve ter saído quando abriste a porta. Os gatos são muito rápidos!"
Aquele gato com a minha família até entrava e saía pela porta. Comportava-se sempre  como um gatinho bem comportado. O que é certo é que passados alguns dias a minha mãe levou-me a um médico muito chato, que me fez muitas perguntas estúpidas sobre as minhas brincadeiras: sobre se eu ouvia vozes sem ver as pessoas e se via coisas que não existiam. Disse-lhe que não gozasse comigo. Que eu já era bem crescidinho para saber que não existem fantasmas, mas confirmei-lhe que falava com o meu gato, porque ele falava comigo. Disse-lhe que o Scrodinger resolvia puzzles e tinha conversas mais inteligentes do que a maioria dos adultos. Também lhe disse que o meu gato nunca me fez perguntas tão parvas como as dele.
Bem, o homem deve ter ficado muito zangado com a minha irreverência e deve ter dito isso aos meu pais, porque fiquei de castigo sem ver televisão nem jogar na minha consola muitos meses. E também fui proibido de brincar com o gato. O bicho deve ter-se apercebido de que não era bem vindo lá em casa porque passou vários meses sem aparecer.
Ainda vos não falei dos meus amigos. Sempre tive muitos amigos, além do gato, claro. No meu grupo éramos e ainda somos nove amigos. Todos conheciam o meu gato pois quando iam lá a casa encontravam-no muitas vezes no meu quarto.  Ouviam as minhas histórias com ceticismo, pois o bichano nunca foi mais do que gato, quando estavam presentes.
Às vezes, quando não conseguia safar-me nalgum jogo da consola eles gozavam comigo:
" -Porque não pedes ajuda ao Schrodinger ? De certeza que ele é capaz! "
Eu amuava sempre com essas piadas e o meu gato muito compreensivo saltava para o meu colo a confortar-me. Transmitia-me um sentimento de compreensão e conforto mesmo sem falar. Então, passado pouco tempo, passava-me o amuo e continuava a brincadeira.
Quando tinha dez anos, na véspera de do Dia de Pão por Deus (a festa do Halloween) aconteceu uma grande desgraça: o Hugo adoeceu de súbito e foi para o hospital. Ouvi os meus pais dizerem que ele estava mesmo muito doente e até podia morrer.
Isso aconteceu logo naquele dia em que tínhamos combinado ir juntos pelas portas pedir: - Pão, por Deus! ou -Doce ou travessura!
Fui para o meu quarto chorar e o Schrodinger como sempre apareceu de repente. Como sentiu que eu estava triste saltou para o meu colo e perguntou :
"-O que tens?"
Respondi:
"- O Hugo está no hospital e vai morrer! Tu que és um gato mágico, podias curá-lo!"
Schrodinger então disse:
"- Se me deres dez anos da tua vida eu dou-os ao Hugo e ele vive até aos vinte!”
“ Mesmo assim vai morrer tão cedo! " - respondi-lhe.
“ -Se cada menino do vosso grupo oferecer dez anos da sua vida ao Hugo, todos vós ides viver juntos até aos noventa. Achas que os outros concordam? " disse o gato .
"-Acho que sim! Vou chamá-los!”
Telefonei aos meus amigos e em menos de meia hora estávamos todos no meu quarto, onde lhes expus o plano do gato. Acharam que era mais uma das minhas maluqueiras e o gato dava-lhes razão: estava placidamente a observar-nos.
De repente a voz do Schrodinger gritou na minha cabeça:
"- O coração do Hugo parou! "
Ao ouvir isso gritei: " - O Hugo está a morrer!"
Nesse momento as paredes do quarto ficaram transparentes e nós estávamos a ver o Hugo na cama do hospital, ligado a muitos aparelhos estranhos a apitar e os médicos e enfermeiras a correr para ele.
Gritei para o Schrodinger:
"- Dou metade da minha vida.  Faz qualquer coisa!”
Os outros ainda abismados com o que viam disseram em coro :
"-Nós também! Schrodinger salva o Hugo! "
O Gato falou e então todos nós o ouvimos :
" - Vou tirar dez anos da vida de cada um e vou dá-los ao Hugo! Sois bons meninos.  Todos vão viver até aos noventa anos! "
As paredes tornaram-se outra vez opacas e nós começamos todos a pular e a gritar:
“ -Salvamos o Hugo! Salvamos o Hugo! "
Alarmada com aquela algazarra a minha mãe bateu à porta e perguntou:
" -  Que se passa? Abram a porta? "
O Schrodinger disse-nos:
 "- Ide visitar o Hugo!"  - e, à vista de todos, saltou através da parede e desapareceu.
Quando a minha mãe entrou\ contei-lhe que o Schrodinger curou o Hugo e perante o espanto dela, saímos a correr para a paragem do autocarro que passa no Hospital. Quando lá chegamos pedimos para visitar o Hugo, mas os rececionistas não queriam deixar-nos entrar. Ficamos retidos até que apareceu um médico que disse:
"-São vocês os amigos do Hugo? Ele está à vossa espera! ponham a máscara, vistam a bata e calcem as sabrinas, para entrar nos cuidados intensivos. "
Fizemos isso num ápice, subimos de elevador  e entramos na sala onde havia muitos médicos espantados. Aquele que nos acompanhou desde a receção disse para os outros:
"-São estes os meninos que o Hugo diz que lhe emprestaram dez anos das suas vidas . Parece inacreditável, mas  depois da crise, ele está milagrosamente curado. Acho que no fim do dia podemos mandá-lo para casa. Podem ir todos mendigar os bolinhos do Halloween!"
Não tínhamos a certeza de como é que o Hugo sabia o que tinha acontecido, mas desconfiávamos.   Ninguém se referiu ao gato que atravessava as paredes. Era o nosso segredo.