12 maio 2020

A verdade dos números

Espremer os números
Na gíria da investigação criminal da polícia francesa há uma frase lapidar "Cherchez la femme " (popularizada por Alexandre Dumas-pai )  que significa: " procurem o mobil do crime, procurem a razão ou a verdade". Em ciência também há uma frase similar "Querem a verdade? Espremam os números!".
Essa é a proposta que deixo aos leitores na série de artigos que agora inicio.

PREÂMBULO
Grande parte das teorias científicas com mais impacto nos últimos séculos, que tornaram famosos os seus autores, poderiam ter sido formuladas por outros na mesma época ou até anteriormente em outras décadas ou mesmo séculos, pois antes já existiam os conhecimentos e as ferramentas utilizadas para a sua demonstração.
Posso dar como exemplo , a formulação da Teoria da Relatividade Restrita por Albert Einstein em 1905. Os conceitos em que ele se baseou e as ferramentas matemáticas usadas já existiam antes, incluindo a transformação de Lorenz  , omnipresente na formulação por ele adotada.  A genialidade deste vulto maior da física do séc.XX foi reanalisar os dados existentes por um novo ângulo e tirar as conclusões necessárias, mesmo que isso fosse contra intuitivo.
Outra questão a considerar é que o conhecimento só se transforma verdadeiramente em ciência quando satisfaz cumulativamente duas condições:
 a) pode ser representado em linguagem matemática
 e
b) dá origem ou suporte a tecnologia, ou seja, complementa a experiência.
Os dados experimentais,  os números, têm subjacente o modelo de representação da realidade. Desde o início da vida na terra que os seres, a que nós chamamos vivos, interagem com a realidade envolvente através da análise dos dados recolhidos pelos seus sensores. Esses dados são muito mais usados como valores relativos de uma grandeza (taxa de variação, ou gradiente) do que como medidas absolutas. A vida depende muito mais da mudança do que das coisas que não variam. Entre as características dessa mudança as que têm mais significado para os seres vivos são  o gradiente (taxa de variação de primeira ordem) e a variação desse gradiente (taxa de variação de segunda ordem ) - a aceleração da mudança.
Isso significa que na maioria das vezes a realidade é representada por um modelo descrito por sistemas de equações diferenciais de primeira ordem. Por exemplo, se conhecemos a velocidade de um corpo que se movimenta em linha reta, podemos escrever que o espaço percorrido pelo corpo é Espaço = vxt. (sendo v a velocidade medida e t o tempo de duração da observação ). Ora , embora esta equação nos descreva bem o momento presente, não nos dá qualquer informação sobre a posição do corpo no passado ou no futuro. Existe uma incerteza intrínseca sobre a posição inicial do corpo em relação ao referencial por nós escolhido e ainda se nessa posição inicial o corpo estava imóvel ou tinha uma velocidade igual ou diferente da presente. Pela mesma razão não nos permite conhecer a posição no futuro.
Esta representação da realidade por meio de equações diferenciais é intrinsecamente incerta ou incompleta. Por isso, aos cálculos que se podem realizar com esta fórmula, eu chamo cálculos de incertezas. Esses cálculos são obtidos resolvendo o sistema de equações diferenciais que descrevem a realidade observada, ou seja, calculando os integrais dessas equações.
Na maioria das situações reais antes de termos a realidade representada pelo seu modelo (o tal sistema de equações diferenciais) temos apenas uma coleção de números resultantes do registo de observações, que normalmente se organizam em tabelas. Destas tabelas e da sua representação gráfica os investigadores tentam extrair um modelo matemático (as equações) que permita simular a realidade e lhes permita comparar os resultados experimentais com os valores calculados e novamente por exame das diferenças procurar afinar o modelo. Tentativa-> erro-> correção : é este o método da vida para obter o conhecimento da realidade.
Mas mesmo  com as fórmulas certas extraídas de números que são o resultado do registo de gradientes (derivadas de primeira ordem 1 ou ou da variação destes ( derivadas de segunda ordem) as condições iniciais não podem ser inferidas diretamente desses números e têm de ser arbitradas de forma a que as previsões do modelo estejam de acordo com resultados experimentais.
Se os dados que se estão a modelar representam uma evolução na linha do tempo o que anteriormente se disse significa que para o estado presente temos muitos estados passados possíveis cujo leque só se restringe com mais dados experimentais muitas vezes futuros.
Este preâmbulo em que se expuseram conceitos matemática elementares vai servir de base para analisar uma situação, real que é a pandemia ARS - COV-2 ou COVID19
No artigo "Tempos perigosos" chamei a atenção para uma evolução sem confinamento , baseada no conhecimento sobre esse vírus disponível  na altura e sobre o comportamento dos seres humanos atuais, em ambiente urbano, nos países ocidentais. Consideramos também como condições iniciais: o contágio a partir de uma única fonte que podemos designar por paciente zero. Considerei ainda que cada infetado contagiaria de quatro sete pessoas por semana e fiz projeção da evolução nos dois cenários, ao longo de 24 semanas. Como os números apontavam para uma catástrofe mundial de grandes proporções apontei como única solução possível, a adoção de medidas drásticas de confinamento em todo o mundo, o que na realidade foi adotado pela maioria do estados . Mesmo assim, alguns estados muito populosos como os USA, a Itália, a França, a Inglaterra e o Brasil demoraram adoção das medidas necessárias e estão agora abraços com uma catástrofe sanitária e social de proporções cataclísmicas.
Relembro o números da minha projecão para uma taxa de contágio de 4 novos infetados por cada contagiado INFETADOS =4^mum. de semanas de epidemia. Como estamos na vigésima semana após a hipotética primeira infecção do paciente zero, supostamente na cidade chinesa de Wuhan , dando como ponto de partida , a data da primeira notificação das autoridades de saúde chinesas : 31-12-2019, o que significa que o primeiro contágio teria sido feito entre um a quatro de Dezembro de 2019
Assim , no dia de hoje, à vigésima semana , teríamos N(infetados)=4^20=1.099.511.627.776 ou seja já teríamos contagiado toda a humanidade desde a semana 16,5 e já estariamos a contaminar os céus.!!! Felizmente não aconteceu nada disso. Fizemos uma boa contenção - confinamento e etiqueta social.
Além do mais, o modelo usado não é adequado para propagação de epidemias, mas sim para reações em cadeia (explosivas). A modelação de epidemias mais usada na ciência é o modelo médico SIR (Suscetíveis; Infetados, Removidos - Recuperados)
https://wikiciencias.casadasciencias.org/wiki/index.php/Modelo_SIR_em_epidemiologia
Se aplicarmos uma taxa Ro entre 2 e 2,5 considerada a taxa média de contágio inicial no modelo  SIR, ao desenvolvimento exponencial usado por mim no artigo citado, temos N=2,146^20 = 4.391.354 Valor muito próximo dos reais 4.283. 504 casos confirmados hoje 12-5-2020. Tendo em atenção que sendo um valor médio significa que se nos países com mais sucesso no combate já temos um R entre 0,9 e 1,1 então no começo de todos os países e naqueles em que a pandemia ainda está fora de controlo a taxa de contágio é muito superior. Talvez mais próxima de 4 ou então que o número real de infetados é muitíssimo maior do que o participado, por não se terem feito os testes suficientes e ainda porque agora está confirmado que a maioria dos infetados (mais de 80%) permanece assintomático sem desenvolver a doença mas transmite o vírus. O que mostra que os infetados devem ser cinco a dez vezes mais do que os participados.
Vamos ver o que nos dizem os números...
continua...