A inflação explicada à luz da teoria do valor pós-marxista:
Constatação:
Verifica-se que em determinadas circunstâncias os governantes têm
necessidade de aumentar a quantidade de símbolos do valor (ou
dinheiro) circulante para manter a economia de mercado a funcionar,
isto é: fazem emissão de moeda.
Isto tem como como consequência
uma alteração de paridade entre os preços das mercadorias com
tendência para as mercadorias importadas verem o seu preço
aumentado (inflacionado) apenas por essa razão (sem haver a
montante alterações nos custos ou nos lucros).
O erro da economia
política clássica incluindo a da escola marxista
E
porque é que há necessidade de aumentar a quantidade de moeda
circulante? A procura da resposta leva-nos a rever a razão da
existência do dinheiro, por muitos considerado um tipo especial de
mercadoria, inicialmente baseado na crença do valor intrínseco e
absoluto dos metais preciosos como o ouro. Karl Marx também comprou
essa ideia do dinheiro como uma mercadoria especial, usada como
padrão de troca. Em meu entender isso afastou-o do cerne da sua
ideia inicial sobre o valor das coisas que considerava o tempo
socialmente necessário para a produção como a base da formação
do valor e dos preços dos bens e serviços.
Por
causa deste erro os economistas ficaram sem ferramentas para explicar
dois factos constatados atualmente : pode haver mercadorias com
preço de aquisição diferente de zero cujo valor incorporado é
nulo e pode haver mercadorias de grande valor incorporado como por exemplo: o alojamento e o software devsuporte a este blog que são
transacionadas a custo zero (a Google disponibiliza-os em versão grátis), mas ainda geram lucros para o fornecedor
sem gerarem despesas imediatas para o comprador ou recetor.( Neste caso o autor e os leitores)
O dinheiro
O
desenvolvimento da sociedade durante último quarto do sec XX e agora
no início do sec XXI levou o dinheiro para o seu papel verdadeiro ou
seja para o papel de símbolo. Atualmente, o dinheiro como símbolo
de troca de titularidade da posse de mercadorias (bens e serviços) por um título de crédito, já não precisa de
existir fisicamente (não são necessárias notas ou moedas nem
sequer equivalência em ouro) basta que exista um número registado
num registo contabilístico ( uma conta corrente bancária,
empresarial ou nacional).
Mas o
que é mesmo esse símbolo: o dinheiro? O papel-moeda tem em si algum
valor?
Será que poderíamos queimar todas as notas e derreter todas
as moedas sem afetar o funcionamento da economia?
A
resposta a esta questão foi dada de forma brilhante por Lazarus Long, um personagem criado pelo escritor Robert A. Heinlein no livro :
“Time enough for love” (“Amor sem limites”, em versão
portuguesa). No bloco notas onde anotava os seus pensamentos e
apontamentos da sua vida, Lazarus Long comentava que:" o dinheiro só
tem valor quando está fora do banco emissor e uma vez retornado para
o seu interior pode ser queimado que não afeta nada nem ninguém!"
O
dinheiro não é o valor. É no máximo um símbolo do valor, mas
apenas quando está em circulação fora do banco emissor! O papel
moeda representa apenas um certificado de crédito, que faz o saldo de uma dívida, derivada um crédito obtido como emprestimo do banco emissor. Nada mais!
Então aquilo a
que devemos prestar atenção concetualmente e matematicamente é ao
crédito e o seu relacionamento com o valor económico e o tempo.
Se o
valor está no tempo aplicado em trabalho pelas pessoas e se à
medida que a civilização se desenvolve as pessoas aplicam cada vez
menos do seu tempo para obterem o necessário para viver
condignamente, então pergunta-se como é que isso é possível?
As
pessoas evoluíram fisicamente e tornaram-se super trabalhadores ?
As
pessoas aprenderam a organizar melhor o seu tempo e com isso tiveram
ganhos de eficiência?
Ou há outras razões?
Bem,
segundo a ciência antropológica, pelo menos nos últimos 20000 anos
da humanidade, não houve nenhuma evolução física relevante. O
nosso corpo pura e simplesmente não evoluiu, portanto não é esta a
razão.
É um facto que as pessoas com a civilização conseguem
organizar melhor o seu tempo, mas isso apenas pode explicar
diferenciais locais entre pessoas que vivem na mesma janela temporal.
E como explicar que as capacidades médias de produção por pessoa
sejam milhares de vezes maiores do que há 20 000 anos ou que a produtividade de um rural africano seja centenas de
vezes menor do que um rural americano a tratar do mesmo tipo de
culturas?
A
maioria das pessoas instruídas atuais responderia que a diferença
está nos instrumentos usados na produção em si ou na preparação
dos fatores de produção, em especial nas máquinas e nos
automatismos usados.
Sim, aqui é que está a verdade!
E o que
significa isso em termos da teoria do valor ?
As máquinas e
automatismos significam incorporação de trabalho indireto no processo produtivo. Portanto
mais automatismo significa que o rácio (Ti+Td)/Td (tempo de trabalho humano total (direto+indireto )/(trabalho humano direto) a produtividade é muito maior atualmente e muito
maior nos USA do que em África.
Trabalho e capital no
modo de produção capitalista
Ora é
este rácio que nos mede a produtividade e que também mede o capital
acumulado usado num processo produtivo do tipo capitalista em que o
capital seguinte = capital inicial + capital incorporado presente.
E
todo o tempo de trabalho humano fica transformado em capital no modo de
produção capitalista?
Claro
que não ! Todas as pessoas vivas existentes consomem recursos e
mesmo a maquinaria também consome recursos, portanto, só os
excedentes podem ser incorporados no capital fazendo-o crescer.
Ora
estes excedentes do consumo das sociedades é que estão disponíveis
para circularem na economia como crédito circulante que pode ser titulado
como papel moeda ou como qualquer outro símbolo socialmente aceite.
Esse crédito pode mesmo ficar titulado pelo direito de uso para transação de bens materiais : aquilo a que chamamos direitos de
propriedade.
O crédito em
direito transacionável de propriedade de bens materiais (uso no
presente ou usufruto de rendimentos futuros em conjunto com os
direitos de uso futuro de serviços) ou de uso de serviços, é que
constitui o valor que tem de ser titulado pelo dinheiro ou papel
moeda.
Vamos
analisar então em detalhe o conjunto dos créditos circulantes numa
sociedade com economia baseada em mercado (aquela em que o preço de
transação dos bens e serviços contém a totalidade das parcelas
definidas na formula do valor ) cujos intervenientes são pessoas
singulares ou coletivas a quem a lei confere direitos civis.
A propriedade material
e o dinheiro
E as
propriedades de uso particular que servem para o suporte de vida ou
suporte social dos cidadãos, devem ser tituladas por dinheiro? Se
não vão ser transacionados, não! O dinheiro titula apenas créditos
circulantes gerados por transações de bens e serviços.
A transação gera
crédito
É
importante esclarecer como é que uma transação de bens e serviços
gera o crédito. Numa transação permutam-se títulos de propriedade
transacionáveis. O vendedor cede a propriedade, ou seja troca o seu
titulo de propriedade de bens ou serviços, por um título credor de uma dívida,
enquanto o comprador efetua o inverso, cede um título de dívida de
outrem que esteja em sua posse, ou seja um crédito que disponha , e
adquire um título de propriedade. Isto significa que um vendedor em
abstrato confia que um comprador em abstrato possa em em algum
momento liquidar a sua dívida com o produto do seu tempo de trabalho
ou seja, concede-lhe um crédito. É esse crédito em abstrato que
circula na economia de mercado devidamente titulado por símbolos.
Muitas vezes o comprador não tem disponibilidade imediata quer de
tempo quer de títulos mas através do deferimento no tempo da
obrigação de saldar a sua dívida é-lhe concedido um crédito
diferido, mediante uma remuneração adicional o juro.
Créditos circulantes :
moeda real e moeda virtual
Na
atualidade o conjunto dos símbolos de crédito é constituído por:
- papel moeda,
- Moedas digitais Bitcoin e outras)
- crédito em “cartões” de crédito (conta crédito)
- crédito comercial (diferimento no pagamento de faturas)
- Títulos de dívida (obrigações, livranças, letras, cheques e em geral “empréstimos” comerciais de qualquer tipo)
Destes
apenas o papel moeda é 100% controlado controlado pelo estado que é
a entidade emissora e entidade fiscalizadora e também é o único
que tem uma representação real ou material.
O
crédito em cartões ou conta crédito, dinheiro digital blockchain é emitido pelos bancos ou entidades similares de
forma particular (mesmo quando o banco é de capitais públicos). O
controlo público destes créditos é mínimo. A sua equivalência em
dinheiro é quase impossível de ser aferida.
O
crédito comercial é emitido pelas empresas em benefício dos seus
clientes, com prazo de amortização variável, embora seja usual
entre empresas conceder-ser pelo menos 30 dias. O controlo público
destes créditos é atualmente indeterminado. Do mesmo modo a sua
equivalência em dinheiro é quase impossível de ser aferida, embora
se possa fazer uma estimativa a partir do volume de faturação entre
empresas.
Os
títulos de dívida quer estatais quer particulares ( entre cidadãos
ou entre cidadãos e empresas ou mesmo nas empresas entre si ) são
normalmente registados oficialmente por documento de
registo público. Assim pode-se sempre conhecer o volume desses
créditos circulantes. O estado só tem controlo, ou seja só pode
determinar o valor dos títulos de dívida dos organismos de estado.
Desde
o início da gestão digital de contas há cerca de 50 anos o rácio
entre o papel-moeda e os outros símbolos de crédito tem vindo a
descer , ou seja cada vez há mais dinheiro virtual, dinheiro esse
que está fora do controlo estatal. De igual modo a quantidade de
símbolos de crédito (ou seja dinheiro) tem vindo a aumentar
desmesuradamente saindo frequentemente fora de paridade com o valor
produzido. Isso é equivalente à emissão pelo estado de papel moeda
sem controlo e tem como consequência direta o crescimento da
inflação
O falso custo dos bens
e serviços pago pela geração presente
Os
bens e os serviços que têm mais trabalho indireto incorporado e não
são produzidos ou comercializados em condições de monopólio, são
aqueles que em geral que têm menor custo para a geração presente.
Isso acontece porque esse trabalho indireto já foi pago
anteriormente (está agora incorporado no capital) e ainda porque o
eventual custo da reposição das condições iniciais foi diferido
para um futuro fora da janela temporal de vida da geração presente.
E
quais são em geral os bens e serviços nessas condições ? São
aqueles que são produzidos durante um período mais longo e os que
tenham economia de escala associada.
E os
novos bens e serviços vulgarmente conhecidos como moda, fabricados
em séries muito menores do que o que a respetiva tecnologia permite
? Esses têm mais trabalho direto incorporado (em design, em projeto,
em marketing, em geral em tudo o que esteja associado a inovação )
e apenas um mínimo de trabalho indireto.
E onde se consegue
incorporar mais trabalho indireto? Será nos bens ou será nos
serviços?
A
resposta é óbvia . É na produção de bens, pois é nesta classe
económica que atualmente temos maior incorporação de automatização
e processos de produção em série:
- fabricação automatizada
- distribuição com alto nível de automatização ou com um mínimo de mão de obra direta por peça por causa da distribuição em grandes superfícies e do marketing eletrónico maciçoE nos serviços então não há possibilidades de automatizar ?
- Claro que há! E até temos exemplos que se multiplicam todos os dias:
- Os serviços bancários estão com uma taxa de automatização de mais de 95% de todas as operações
- Os serviços do estado como os serviços tributários na última década aceleraram a sua automatização e já mais de 70% das operações podem ser automáticas
- O ensino automatizado e remoto ( e-learning) é já uma realidade cimentada e nas próximas décadas atingirá sem dúvida taxas da ordem dos 90%
- A publicidade e marketing em particular a publicidade endereçada individualmente tem já mais de 90% e automatização.
- Serviços pessoais e domésticos – Quem não conhece os robôs domésticos?
- Serviços de monitorização gestão e manutenção das grandes redes de comunicações de de energia com mais de 95% de automatização
- Até a inovação tecnológica e as invenções (projeto e inventiva) estão neste momento a sofrer um impulso de lançamento com os “algoritmos genéticos” e sistemas de aprendizagem automática profunda (software inventor) que faz com que mais de 10% das novas grandes invenções e inovações tecnológicas já tenha contributo automático
Sendo a automatização omnipresente está contudo
incorporada em proporções bem distintas nos bens e nos serviços e
também em proporções muito diferentes conforme consideramos um bem
ou serviço no lote dos novos (moda ou inovação ) ou no lote dos de
uso corrente mais antigos.
Prestemos atenção agora à sociedade atual designada
por sociedade de consumo em que a regra é a criação de ciclos
tecnológicos artificialmente curtos.
Designamos por ciclo tecnológico o período que vai
desde a prova de conceito (fabricação dos primeiros protótipos)
até ao último dia da fabricação em série de um bem ou o período
que medeia desde a primeira apresentação pública de um serviço
até ao final da sua vida económica, ou seja até que o total do
valor produzido seja menos de 1% do seu máximo.
Em especial para os bens, a vida útil do bem estende-se
muito para além do ciclo tecnológico.
Por exemplo um computador pessoal pode manter-se
funcional por mais de cinco anos desempenhando a sua função sem
degradação de performance, contudo todos os fabricantes lançam
anualmente substitutos e deixam de ter assistência de marca a preços
comportáveis após o período de garantia de 2 anos. Um outro
exemplo ainda mais gritante é o dos telemóveis cuja vida útil pode
ultrapassar 5 anos e os fabricantes e operadores lançam
substituições a cada 6 meses. Contudo os campeões dos ciclos
tecnológicos artificiais são os produtos de vestuário e calçado
cuja funcionalidade pode ser de mais de 2 anos e os fabricantes
lançam novas coleções de 3 em 3 meses ou de 6 em seis meses .
Com os ciclos tecnológicos artificialmente curtos, fica
prejudicada a economia de escala não deixando o seu valor de
aquisição descer até aos níveis que a tecnologia e a dimensão do
mercado permitiriam e criando problemas adicionais de reposição
das condições iniciais (custos associados à reciclagem, eliminação
da pegada de carbono e esgotamento de reservas de matérias primas) .
E o que significam em termos da teoria do valor,
ciclos tecnológicos artificialmente curtos ?
Primeiro: significam que nunca se atinge a quantidade de
trabalho indireto incorporado que a tecnologia permite ou seja, o
rácio (Td+Ti)/TD para classe de bens ou de serviços não desce. Mais,
poderá mesmo implicar uma subida se considerarmos o esforço de
marketing necessário para fomentar o consumo. Marketing esse todo
feito de novo e à medida, logo caro, que não se destina a criar
novos consumidores para a classe de bens ou serviços, mas somente a
levar à substituição do bem ou serviço por outro que esteja na
moda.
Segundo: Que sendo produzidas pequenas séries (em
relação ao que a dimensão do mercado e o estado da tecnologia
permitem, o fator do valor dependente do fator de escassez ( oferta/procura) na fórmula do valor assume um valor relevante
.
Terceiro: A viabilidade da produção em ciclos
tecnológicos curtos depende claramente de em curto período de tempo
se conseguir atingir o máximo número de compradores. Ora isto só
se consegue em regime de monopólio da cadeia de produção
distribuição. Então como vimos a parcela da teoria de valor
correspondente ao “fator de monopólio, assume um valor relevante
Estes
três fatores conjugam-se para que o custo de aquisição dos bens e
serviços de ciclo tecnologicamente curto se mantenha sempre
elevado e se tente adiar o pagamento da reposição das condições
iniciais, para um futuro o mais distante possível.
Se
no cenário anterior tivermos os símbolos monetários vinculados ao
número de transações, (cada transação gera um crédito e os
créditos geram símbolos) caso mais comum na sociedade com o modo
de produção capitalista atual, então os símbolos de valor
circulantes estão sempre a aumentar. Além disso se em vez de
vermos baixar o custo e aumentar a quantidade dos bens e serviços
de ciclo tecnológico mais longo por força dos ganhos tecnológicos
em produtividade, virmos o seu preço manter-se em paridade com os
novos serviços, o que notamos é que o número de unidades de
crédito gerados pela sua transação aumenta no tempo ou seja
notamos inflação nos preços.
Mas
ainda, temos outra consequência fundamental da sociedade de consumo
( aquela em que está generalizada a produção de bens e serviços
de ciclo tecnológico curto): a produção de bens e serviços de
ciclo curto é suportada por pessoas oriundas da bolsa de trabalho
ativa, deslocadas para esta atividade, que se mantêm consumidoras
dos bens e serviços de ciclo longo (o consumo potencial destes bens
e serviços mantém-se praticamente inalterado por este movimento
social). Como é óbvio se não se der um aumento de produtividade
(rácio (Ti+TD)/Td ) que compense a diminuição do trabalho direto
disponível, vai haver menos produção (oferta) do que o consumo
potencial (procura) fazendo crescer o fator Op na fórmula do
valor, levando ao aumento do custo de aquisição desses bens e
serviços ou seja fazendo subir a taxa de inflação.
E
quando se esgota a capacidade social de absorver mais novos bens e
mais novos serviços ? O que acontece?
Acontece a outra face da inflação que é o desemprego - a crise..
A evolução tecnológica permite produzir e distribuir
mais bens e serviços com maior produtividade (rácio Ti+TD)/Td mais
elevado), mas não havendo aumento de consumo correspondente, dá-se uma sobre produção , e uma desvalorizaçao do stock ,“a
bolha rebenta” , fazendo perecer empresas e criando
desemprego.
Conclusão
A sociedade de consumo como fase final da evolução
económica do modo de produção capitalista
é uma sociedade
naturalmente geradora de inflação:
-
pelo aumento de duas das
três parcelas que compôem a fatura total a pagar pela sociedade.
Custo total
= Custo de aquisição (actual)
+ Custo de posse (dentro do prazo de vida útil) + Custo
de reposição das condições iniciais (longo prazo)
- pelo aumento natural dos créditos em circulação e
dos correspondentes símbolos monetários
As
causas da inflação à luz da teoria do valor
Pelo
exposto pode-se concluir que as causas da inflação à luz de uma
nova visão da teoria do valor são:
- de caráter social (movimentação demográfica) : sempre que se verifique uma mudança significativa de pessoas da produção de bens fabricados em grande série para para a produção de novos bens ou serviços de baixa incorporação de trabalho indireto (baixa produtividade)
- de caráter financeiro: sempre que se verifique a emissão de créditos ou dinheiro virtual sem contrapartida do trabalho direto incorporado nos bens e serviços transacionados
- Pela sociedade de consumo
- Pela destruição de bens , serviços e estrutura social causada por guerras ou eventos economicamente estéreis