25 junho 2013

Uma visão pós - Marxista da Teoria do Valor 8


A inflação explicada à luz da teoria do valor pós-marxista:

Constatação: Verifica-se que em determinadas circunstâncias os governantes têm necessidade de aumentar a quantidade de símbolos do valor (ou dinheiro) circulante para manter a economia de mercado a funcionar, isto é: fazem emissão de moeda. 
Isto tem como como consequência uma alteração de paridade entre os preços das mercadorias com tendência para as mercadorias importadas verem o seu preço aumentado (inflacionado) apenas por essa razão (sem haver a montante alterações nos custos ou nos lucros).

O erro da economia política clássica incluindo a da escola marxista
E porque é que há necessidade de aumentar a quantidade de moeda circulante? A procura da resposta leva-nos a rever a razão da existência do dinheiro, por muitos considerado um tipo especial de mercadoria, inicialmente baseado na crença do valor intrínseco e absoluto dos metais preciosos como o ouro. Karl Marx também comprou essa ideia do dinheiro como uma mercadoria especial, usada como padrão de troca. Em meu entender isso afastou-o do cerne da sua ideia inicial sobre o valor das coisas que considerava o tempo socialmente necessário para a produção como a base da formação do valor e dos preços dos bens e serviços.
Por causa deste erro os economistas ficaram sem ferramentas para explicar dois factos constatados atualmente : pode haver mercadorias com preço de aquisição diferente de zero cujo valor incorporado é nulo e pode haver mercadorias de grande valor incorporado como por exemplo: o alojamento e o software devsuporte a este blog que são transacionadas a custo zero (a Google disponibiliza-os em versão grátis), mas ainda geram lucros para o fornecedor sem gerarem despesas imediatas para o comprador ou recetor.( Neste caso o autor e os leitores)

O dinheiro
O desenvolvimento da sociedade durante último quarto do sec XX e agora no início do sec XXI levou o dinheiro para o seu papel verdadeiro ou seja para o papel de símbolo. Atualmente, o dinheiro como símbolo de troca de titularidade da posse de  mercadorias (bens e serviços) por um título de crédito, já não precisa de existir fisicamente (não são necessárias notas ou moedas nem sequer equivalência em ouro) basta que exista um número registado num registo contabilístico ( uma conta corrente bancária, empresarial ou nacional).
Mas o que é mesmo esse símbolo: o dinheiro? O papel-moeda tem em si algum valor? 
Será que poderíamos queimar todas as notas e derreter todas as moedas sem afetar o funcionamento da economia?
A resposta a esta questão foi dada de forma brilhante por Lazarus Long, um personagem criado pelo escritor Robert A. Heinlein no livro : “Time enough for love” (“Amor sem limites”, em versão portuguesa). No bloco notas onde anotava os seus pensamentos e apontamentos da sua vida, Lazarus Long comentava que:" o dinheiro só tem valor quando está fora do banco emissor e uma vez retornado para o seu interior pode ser queimado que não afeta nada nem ninguém!"
O dinheiro não é o valor. É no máximo um símbolo do valor, mas apenas quando está em circulação fora do banco emissor! O papel moeda representa apenas um certificado de crédito, que faz o saldo de uma dívida, derivada um crédito obtido como emprestimo do banco emissor. Nada mais! 

Então aquilo a que devemos prestar atenção concetualmente e matematicamente é ao crédito e o seu relacionamento com o valor económico e o tempo.
Se o valor está no tempo aplicado em trabalho pelas pessoas e se à medida que a civilização se desenvolve as pessoas aplicam cada vez menos do seu tempo para obterem o necessário para viver condignamente, então pergunta-se como é que isso é possível?
As pessoas evoluíram fisicamente e tornaram-se super trabalhadores ? 
As pessoas aprenderam a organizar melhor o seu tempo e com isso tiveram ganhos de eficiência? 
Ou há outras razões?

Bem, segundo a ciência antropológica, pelo menos nos últimos 20000 anos da humanidade, não houve nenhuma evolução física relevante. O nosso corpo pura e simplesmente não evoluiu, portanto não é esta a razão. 
É um facto que as pessoas com a civilização conseguem organizar melhor o seu tempo, mas isso apenas pode explicar diferenciais locais entre pessoas que vivem na mesma janela temporal. 
E como explicar que as capacidades médias de produção por pessoa sejam milhares de vezes maiores do que há 20 000 anos ou que a produtividade de um rural africano seja centenas de vezes menor do que um rural americano a tratar do mesmo tipo de culturas?
A maioria das pessoas instruídas atuais responderia que a diferença está nos instrumentos usados na produção em si ou na preparação dos fatores de produção, em especial nas máquinas e nos automatismos usados. 
Sim, aqui é que está a verdade!
E o que significa isso em termos da teoria do valor ?
 As máquinas e automatismos significam incorporação de trabalho indireto no processo produtivo. Portanto mais automatismo significa que o rácio (Ti+Td)/Td (tempo de trabalho humano total (direto+indireto )/(trabalho humano direto) a produtividade é muito maior atualmente e muito maior nos USA do que em África.

Trabalho e capital no modo de produção capitalista
Ora é este rácio que nos mede a produtividade e que também mede o capital acumulado usado num processo produtivo do tipo capitalista em que o capital seguinte = capital inicial + capital incorporado presente.

E todo o tempo de trabalho humano fica transformado em capital no modo de produção capitalista?
Claro que não ! Todas as pessoas vivas existentes consomem recursos e mesmo a maquinaria também consome recursos, portanto, só os excedentes podem ser incorporados no capital fazendo-o crescer. 
Ora estes excedentes do consumo das sociedades é que estão disponíveis para circularem na economia como crédito circulante que pode ser titulado como papel moeda ou como qualquer outro símbolo socialmente aceite. Esse crédito pode mesmo ficar titulado pelo direito de uso para transação de bens materiais : aquilo a que chamamos direitos de propriedade.
O crédito em direito transacionável de propriedade de bens materiais (uso no presente ou usufruto de rendimentos futuros em conjunto com os direitos de uso futuro de serviços) ou de uso de serviços, é que constitui o valor que tem de ser titulado pelo dinheiro ou papel moeda.
Vamos analisar então em detalhe o conjunto dos créditos circulantes numa sociedade com economia baseada em mercado (aquela em que o preço de transação dos bens e serviços contém a totalidade das parcelas definidas na formula do valor ) cujos intervenientes são pessoas singulares ou coletivas a quem a lei confere direitos civis.

A propriedade material e o dinheiro
E as propriedades de uso particular que servem para o suporte de vida ou suporte social dos cidadãos, devem ser tituladas por dinheiro? Se não vão ser transacionados, não! O dinheiro titula apenas créditos circulantes gerados por transações de bens e serviços.

A transação gera crédito
É importante esclarecer como é que uma transação de bens e serviços gera o crédito. Numa transação permutam-se títulos de propriedade transacionáveis. O vendedor cede a propriedade, ou seja troca o seu titulo de propriedade de bens ou serviços, por um título credor de uma dívida, enquanto o comprador efetua o inverso, cede um título de dívida de outrem que esteja em sua posse, ou seja um crédito que disponha , e adquire um título de propriedade. Isto significa que um vendedor em abstrato confia que um comprador em abstrato possa em em algum momento liquidar a sua dívida com o produto do seu tempo de trabalho ou seja, concede-lhe um crédito. É esse crédito em abstrato que circula na economia de mercado devidamente titulado por símbolos. Muitas vezes o comprador não tem disponibilidade imediata quer de tempo quer de títulos mas através do deferimento no tempo da obrigação de saldar a sua dívida é-lhe concedido um crédito diferido, mediante uma remuneração adicional o juro.

Créditos circulantes : moeda real e moeda virtual
Na atualidade o conjunto dos símbolos de crédito é constituído por:
  • papel moeda,
  • Moedas digitais Bitcoin e outras)
  • crédito em “cartões” de crédito (conta crédito)
  • crédito comercial (diferimento no pagamento de faturas)
  • Títulos de dívida (obrigações, livranças, letras, cheques e em geral “empréstimos” comerciais de qualquer tipo)
Destes apenas o papel moeda é 100% controlado controlado pelo estado que é a entidade emissora e entidade fiscalizadora e também é o único que tem uma representação real ou material.
O crédito em cartões ou conta crédito, dinheiro digital blockchain é emitido pelos bancos ou entidades similares de forma particular (mesmo quando o banco é de capitais públicos). O controlo público destes créditos é mínimo. A sua equivalência em dinheiro é quase impossível de ser aferida.
O crédito comercial é emitido pelas empresas em benefício dos seus clientes, com prazo de amortização variável, embora seja usual entre empresas conceder-ser pelo menos 30 dias. O controlo público destes créditos é atualmente indeterminado. Do mesmo modo a sua equivalência em dinheiro é quase impossível de ser aferida, embora se possa fazer uma estimativa a partir do volume de faturação entre empresas.
Os títulos de dívida quer estatais quer particulares ( entre cidadãos ou entre cidadãos e empresas ou mesmo nas empresas entre si ) são normalmente registados oficialmente por  documento de registo público. Assim pode-se sempre conhecer o volume desses créditos circulantes. O estado só tem controlo, ou seja só pode determinar o valor dos títulos de dívida dos organismos de estado.
Desde o início da gestão digital de contas há cerca de 50 anos o rácio entre o papel-moeda e os outros símbolos de crédito tem vindo a descer , ou seja cada vez há mais dinheiro virtual, dinheiro esse que está fora do controlo estatal. De igual modo a quantidade de símbolos de crédito (ou seja dinheiro) tem vindo a aumentar desmesuradamente saindo frequentemente fora de paridade com o valor produzido. Isso é equivalente à emissão pelo estado de papel moeda sem controlo e tem como consequência direta o crescimento da inflação

O falso custo dos bens e serviços pago pela geração presente
Os bens e os serviços que têm mais trabalho indireto incorporado e não são produzidos ou comercializados em condições de monopólio, são aqueles que em geral que têm menor custo para a geração presente. Isso acontece porque esse trabalho indireto já foi pago anteriormente (está agora incorporado no capital) e ainda porque o eventual custo da reposição das condições iniciais foi diferido para um futuro fora da janela temporal de vida da geração presente.
E quais são em geral os bens e serviços nessas condições ? São aqueles que são produzidos durante um período mais longo e os que tenham economia de escala associada.
E os novos bens e serviços vulgarmente conhecidos como moda, fabricados em séries muito menores do que o que a respetiva tecnologia permite ? Esses têm mais trabalho direto incorporado (em design, em projeto, em marketing, em geral em tudo o que esteja associado a inovação ) e apenas um mínimo de trabalho indireto.

E onde se consegue incorporar mais trabalho indireto? Será nos bens ou será nos serviços?

A resposta é óbvia . É na produção de bens, pois é nesta classe económica que atualmente temos maior incorporação de automatização e processos de produção em série:
  • fabricação automatizada
  • distribuição com alto nível de automatização ou com um mínimo de mão de obra direta por peça por causa da distribuição em grandes superfícies e do marketing eletrónico maciço
    E nos serviços então não há possibilidades de automatizar ?
  • Claro que há! E até temos exemplos que se multiplicam todos os dias:
  • Os serviços bancários estão com uma taxa de automatização de mais de 95% de todas as operações
  • Os serviços do estado como os serviços tributários na última década aceleraram a sua automatização e já mais de 70% das operações podem ser automáticas
  • O ensino automatizado e remoto ( e-learning) é já uma realidade cimentada e nas próximas décadas atingirá sem dúvida taxas da ordem dos 90%
  • A publicidade e marketing em particular a publicidade endereçada individualmente tem já mais de 90% e automatização.
  • Serviços pessoais e domésticos – Quem não conhece os robôs domésticos?
  • Serviços de monitorização gestão e manutenção das grandes redes de comunicações de de energia com mais de 95% de automatização
  • Até a inovação tecnológica e as invenções (projeto e inventiva) estão neste momento a sofrer um impulso de lançamento com os “algoritmos genéticos” e sistemas de aprendizagem automática profunda (software inventor) que faz com que mais de 10% das novas grandes invenções e inovações tecnológicas já tenha contributo automático

Sendo a automatização omnipresente está contudo incorporada em proporções bem distintas nos bens e nos serviços e também em proporções muito diferentes conforme consideramos um bem ou serviço no lote dos novos (moda ou inovação ) ou no lote dos de uso corrente mais antigos.
Prestemos atenção agora à sociedade atual designada por sociedade de consumo em que a regra é a criação de ciclos tecnológicos artificialmente curtos.
Designamos por ciclo tecnológico o período que vai desde a prova de conceito (fabricação dos primeiros protótipos) até ao último dia da fabricação em série de um bem ou o período que medeia desde a primeira apresentação pública de um serviço até ao final da sua vida económica, ou seja até que o total do valor produzido seja menos de 1% do seu máximo.
Em especial para os bens, a vida útil do bem estende-se muito para além do ciclo tecnológico.
Por exemplo um computador pessoal pode manter-se funcional por mais de cinco anos desempenhando a sua função sem degradação de performance, contudo todos os fabricantes lançam anualmente substitutos e deixam de ter assistência de marca a preços comportáveis após o período de garantia de 2 anos. Um outro exemplo ainda mais gritante é o dos telemóveis cuja vida útil pode ultrapassar 5 anos e os fabricantes e operadores lançam substituições a cada 6 meses. Contudo os campeões dos ciclos tecnológicos artificiais são os produtos de vestuário e calçado cuja funcionalidade pode ser de mais de 2 anos e os fabricantes lançam novas coleções de 3 em 3 meses ou de 6 em seis meses .
Com os ciclos tecnológicos artificialmente curtos, fica prejudicada a economia de escala não deixando o seu valor de aquisição descer até aos níveis que a tecnologia e a dimensão do mercado permitiriam e criando problemas adicionais de reposição das condições iniciais (custos associados à reciclagem, eliminação da pegada de carbono e esgotamento de reservas de matérias primas) .

E o que significam em termos da teoria do valor, ciclos tecnológicos artificialmente curtos ?

Primeiro: significam que nunca se atinge a quantidade de trabalho indireto incorporado que a tecnologia permite ou seja, o rácio (Td+Ti)/TD  para classe de bens ou de serviços não desce. Mais, poderá mesmo implicar uma subida se considerarmos o esforço de marketing necessário para fomentar o consumo. Marketing esse todo feito de novo e à medida, logo caro, que não se destina a criar novos consumidores para a classe de bens ou serviços, mas somente a levar à substituição do bem ou serviço por outro que esteja na moda.
Segundo: Que sendo produzidas pequenas séries (em relação ao que a dimensão do mercado e o estado da tecnologia permitem, o fator do valor dependente do fator de escassez ( oferta/procura) na fórmula do valor assume um valor relevante .
Terceiro: A viabilidade da produção em ciclos tecnológicos curtos depende claramente de em curto período de tempo se conseguir atingir o máximo número de compradores. Ora isto só se consegue em regime de monopólio da cadeia de produção distribuição. Então como vimos a parcela da teoria de valor correspondente ao “fator de monopólio, assume um valor relevante
    Estes três fatores conjugam-se para que o custo de aquisição dos bens e serviços de ciclo tecnologicamente curto se mantenha sempre elevado e se tente adiar o pagamento da reposição das condições iniciais, para um futuro o mais distante possível.
    Se no cenário anterior tivermos os símbolos monetários vinculados ao número de transações, (cada transação gera um crédito e os créditos geram símbolos) caso mais comum na sociedade com o modo de produção capitalista atual, então os símbolos de valor circulantes estão sempre a aumentar. Além disso se em vez de vermos baixar o custo e aumentar a quantidade dos bens e serviços de ciclo tecnológico mais longo por força dos ganhos tecnológicos em produtividade, virmos o seu preço manter-se em paridade com os novos serviços, o que notamos é que o número de unidades de crédito gerados pela sua transação aumenta no tempo ou seja notamos inflação nos preços.
    Mas ainda, temos outra consequência fundamental da sociedade de consumo ( aquela em que está generalizada a produção de bens e serviços de ciclo tecnológico curto): a produção de bens e serviços de ciclo curto é suportada por pessoas oriundas da bolsa de trabalho ativa, deslocadas para esta atividade, que se mantêm consumidoras dos bens e serviços de ciclo longo (o consumo potencial destes bens e serviços mantém-se praticamente inalterado por este movimento social). Como é óbvio se não se der um aumento de produtividade (rácio (Ti+TD)/Td ) que compense a diminuição do trabalho direto disponível, vai haver menos produção (oferta) do que o consumo potencial (procura) fazendo crescer o fator Op na fórmula do valor, levando ao aumento do custo de aquisição desses bens e serviços ou seja fazendo subir a taxa de inflação.

E quando se esgota a capacidade social de absorver mais novos bens e mais novos serviços ? O que acontece?

Acontece a outra face da inflação que é o desemprego - a crise..
A evolução tecnológica permite produzir e distribuir mais bens e serviços com maior produtividade (rácio Ti+TD)/Td mais elevado), mas não havendo aumento de consumo correspondente, dá-se uma sobre produção , e uma desvalorizaçao do stock ,“a bolha rebenta” , fazendo perecer empresas e criando desemprego.
    Conclusão
A sociedade de consumo como fase final da evolução económica do modo de produção capitalista é uma sociedade naturalmente geradora de inflação:
- pelo aumento de duas das três parcelas que compôem a fatura total a pagar pela sociedade. Custo total = Custo de aquisição (actual) + Custo de posse (dentro do prazo de vida útil) + Custo de reposição das condições iniciais (longo prazo)
- pelo aumento natural dos créditos em circulação e dos correspondentes símbolos monetários

As causas da inflação à luz da teoria do valor
Pelo exposto pode-se concluir que as causas da inflação à luz de uma nova visão da teoria do valor são:
  • de caráter social (movimentação demográfica) : sempre que se verifique uma mudança significativa de pessoas da produção de bens fabricados em grande série para para a produção de novos bens ou serviços de baixa incorporação de trabalho indireto (baixa produtividade)
  • de caráter financeiro: sempre que se verifique a emissão de créditos ou dinheiro virtual sem contrapartida do trabalho direto incorporado nos bens e serviços transacionados
  • Pela sociedade de consumo
  • Pela destruição de bens , serviços e estrutura social causada por guerras ou eventos economicamente estéreis

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